Douglas acordou
assustado com o primeiro toque de seu despertador. Normalmente isso não
aconteceria tão rápido nem tão bruscamente como hoje e talvez isso
tivesse ocorrido devido ao estranho sonho da noite passada, um sonho tão real
que quase lhe causou dor de cabeça. Não é todo dia que se sonha com música
sertaneja, acidentes de ônibus ou até mesmo com a própria morte, mas eram essas
as últimas imagens que pairavam em sua mente. Elas eram tão reais que, se não
fosse loucura, ele podia realmente acreditar que tudo havia acontecido. Mas ele
estava bem vivo e decidiu tentar limpar seus pensamentos.
Mas, desta
vez, o primeiro toque foi suficiente para levantar-se de sua cama e tomar um
banho gelado e rápido. Durante o banho, ele se estapeou, beliscou, e sentiu dor
suficiente para se certificar que realmente estava acordado, porque sua
sensação de déjà vu era tão grande que teve impressão de que até mesmo a
posição de sua escova de dente era a mesma do dia anterior. Douglas foi
trabalhar, e ao chegar lá descobriu que todo o seu trabalho do dia anterior
havia sido desfeito. - Mas que brincadeira de mal gosto! Quem foi o
engraçadinho? Alguém o havia mandado fazer o mesmo trabalho duas vezes. Sem
pensar muito, foi direto a sala de seu chefe, um sujeito mal humorado que
normalmente fazia questão de dificultar a sua vida e respondia pelo nome de
Alencar.
Alencar
era um indivíduo comum, de estatura e físico comum. Na verdade a única
característica que era incomum em Alencar era a sua capacidade de inferiorizar ainda
mais os colegas de hierarquia menor. Douglas já esperava escutar as piadinhas
sem graça de seu chefe, mas o que ele não esperava foi justamente o que se
sucedeu: - Com licença senhor Alencar, posso entrar? Perguntou Douglas por
entre a porta meio aberta do escritório da chefia. - Suponho que eu não tenho
escolha, já que você já entrou não é? Por favor, seja rápido, porque eu estou
numa conversa muito importante aqui na internet, e só porque você não pode
acessar o “chat” do seu computador não significa que você pode me atrapalhar. A
propósito Douglas, cadê aquele relatório que eu mandei você me entregar logo
pela manhã? Perguntou Alencar em tom de zombaria. - Bom, é exatamente sobre
isso que eu vim lhe falar senhor, se eu não me engano eu não lhe entreguei isso
ontem mesmo? E lembro até de o senhor me pedir para alterar quase metade do
relatório por não achar de acordo com o padrão da empresa, então... Mas antes
de terminar a frase o rosto do velho rabugento já estava vermelho e parecia que
ia explodir em mil pedacinhos. – Você tá me achando com cara de palhaço, senhor
estagiário? Ou você está me chamando de mentiroso? Eu saberia se você tivesse
me entregado o relatório, que a propósito nunca foi muito bem feito, então, se
você quer continuar a trabalhar nessa empresa, saia daqui e só volte com a
droga do relatório pronto, está me ouvindo?
Aquilo foi
a gota d’agua para Douglas.
Uma resposta que derrubaria Alencar de
seu salto-alto já estava na ponta da língua, mas alguma coisa chamou sua a
atenção e o fez desaprender a falar. Alencar sempre se gabou de sua linda
Mercedes esportiva, porém o carro nunca foi seu de fato. Era de sua esposa, a
filha de uma socialite conhecidíssima, riquíssima e mais algumas “-issimas”,
que deu o azar de engravidar ainda nova de Alencar. Tudo aconteceu durante uma
conturbada noite regada a álcool, um estúpido jogo de verdade ou desafio, uma piscina
aquecida e... Mas enfim, ela tinha o carro e ele tinha um filho dela. Não
obstante se gabar do carro, na parede do escritório, Alencar mantinha um enorme
calendário com vários modelos de carros Mercedes, e a data que o calendário
marcava era o ponto “x” da questão.
A data
marcada era 22 de abril de 2012 e, pasmem, era a mesma data do dia anterior!
Ainda desnorteado com a nova informação, Douglas balbuciou alguma coisa para o
chefe, que poderia ser: “Olha que carro legal esse no seu calendário, a
propósito, eu estou ficando louco e voltei no tempo!” ou então: “Eu adoraria
comer algumas empadas de sola de sapato, com mostarda, por favor”. Nem ele
sabia ao certo o que disse, mas disse, e saiu. Em seu computador, checou vários
site de notícias, seus e-mails e deve ter perguntado para umas dez ou onze
pessoas se a data estava certa ou aquilo era uma espécie de “Dia Nacional do
Ontem”. Fora as pessoas que o olharam
como se ele fosse um doido varrido, a resposta era sempre a mesma: 22 de abril
de 2012, sem mais ou menos nem um diazinho sequer.
Douglas
estava enjoado demais para almoçar (o mesmo almoço de ontem!) e ficou
comparando as coisas que iam acontecendo com as que já tinham acontecido no
“dia anterior”. Adivinhem: Eram todas iguais. Sem nem perceber e obcecado pela
estranha situação que se encontrava, ele estava refazendo seus passos, tudo
igual, até que chegou ao ponto de ônibus de sempre. Ele pegou o mesmo ônibus,
na mesma hora, com as mesmas pessoas, até mesmo o rapazinho do radinho à pilha
estava sentado lá, escutando o seu sertanejo universitário. De repente uma
cutucada nas costas de Douglas o tirou de seu transe. Ao se virar, deu de cara
com um rapaz com mais ou menos a sua idade olhando fixamente em seus olhos. O
garoto vestia jeans e camiseta branca, e não tinha nada de anormal, tirando os
seus olhos, que pareciam emitir uma luz bem fraca por baixo dos óculos escuros
tipo aviador.
O
rapaz encarava Douglas sem falar nada, mergulhando os dois em um silêncio constrangedor.
Mas alguém cedeu ao embaraçoso momento, e Douglas falou: - Errr, sim? O rapaz
levantou uma das sobrancelhas e falou, ainda encarando-o: - Amigão, esse ônibus
chega pra Avenida Perdigueiras? Nesse momento Douglas pensou: Ou eu “embirutei”
de vez, ou eu já escutei essa voz, e ela falava dentro da minha cabeça! Douglas
só teve tempo pra virar a cabeça, e vomitar nos pés do cara do sertanejo.